Medo de altura e pavor de macarrão
Lembro-me
de quando eu tinha quatro anos, juntamente com meu irmão gêmeo e mais dois
irmãos mais novos (sim, éramos uma “escadinha”). Nossos pais estavam com
dificuldades financeiras. Minha mãe, que nunca fugiu à luta, começou a trabalhar
fora, e nos deixou com uma moça chamada Generosa (é incrível como me lembro da
fisionomia dela, principalmente dos olhos). Assim, ficou acertado que a prioridade era o
nosso cuidado, em especial com nossa alimentação, e, se desse tempo, ela faria
o resto do serviço em casa.
Meus pais saíam de casa às sete e
trinta; o mesmo horário que ela chegava, e, a partir daquele horário, o alvoroço começava logo cedo com banhos, roupas limpas e
também... Bom, e também ela tirava a mesa do café da manhã, colocando cada um de nós
sentados em uma cadeira em cima da mesa, amarrados pela cintura para que não
caíssemos. O único que ficava no berço era o meu irmão mais novo.
A princípio eu achava o “máximo”, não
que eu soubesse o que significava esse tal máximo, mas como sempre fui uma
mente devaneadora, ficava lá, amarrada, e assim prosseguiam os dias, as semanas.
Parece coisa de pesadelo, mas foi
muito real e até bom nas primeiras horas, eu e meus irmãos brincávamos de
ônibus, trenzinho, avião, passarinho. Usávamos a imaginação, mas a criatividade
cessou. Enquanto isso, ela trabalhava na
limpeza, realizada todos os dias. De vez em quando, ela perguntava quem queria
ir ao banheiro e, como era de se esperar, passei a querer ir toda a hora.
Na hora do almoço ela preparava,
quase sempre, macarrão, que era servido em copos, um para cada um. Claro que
podíamos repetir, e então fazíamos com gosto pela falta de não ter o que fazer.
Quando se aproximava o horário de minha mãe chegar ela nos tirava das alturas e
nos dava pirulitos. Essa era a melhor hora do dia. Minha mãe chegava e
encontrava tudo impecavelmente limpo, organizado. O que muito agradava mamãe.
Os dias foram passando e fomos
cansando, algumas vezes chorávamos, noutras até dormíamos ali mesmo, feitos “bichos
em árvores”. Como sempre a comida, digo o macarrão, era servido em copos, tipo requeijão.
Depois que terminávamos o “maravilhoso
almoço”, ela nos servia “Q-suco”, doce demais, no mesmo copo para não sujar outro.
Uma vez fiz greve de fome, sem saber
o que era greve, mas fiz por estar enjoada daquele macarrão esbranquiçado. É claro
que eu e meus irmãos perdemos peso. Fazíamos um “campeonato” de quem chorava
mais. Quase sempre dava empate.
A fraqueza que ficávamos dava a ela
mais tempo para “faxinar”. Ficávamos ali, pendurados, entregues. Passei a ter
medo de olhar para o chão, meu medo de cair era tanto que a noite eu tinha
pesadelos horríveis.
Minha mãe começou a nos instigar, e
em nossa linguagem de criança, dizíamos que não queríamos mais brincar no alto
da cadeira.
Depois de um tempo, como de costume, quando
ouvíamos o portão se abrindo com a chegada da Generosa (todos nós
começávamos a chorar, eu me agarrava em mamãe pedindo para ela ficar em casa
conosco, porque não queria mais ficar lá em cima, apontando para mesa). O
Daniel, meu irmão polaquinho, ficava vermelho feito sangue.
Mamãe nos abençoava e saia com ar de
tristeza. E assim, começava de novo a
nossa desventura nos ares.
Hoje em dia, quando ouço a palavra
generosa (que significa: pessoa capaz de deixar de lado os seus
próprios interesses para ajudar outra pessoa) me dá um acesso de riso.
Em uma tarde quente com o cheiro
forte de cera que ela havia passado no chão, acabamos dormindo e acordamos com
o grito de mamãe, que chegou mais cedo.
Nunca vou me esquecer da bofetada que mamãe deu em Generosa. Foi um dia diferente,
não sei de onde mamãe tirou tanta força, mas acabou amarrando a dita cuja na
cadeira em cima da mesa e a polícia foi chamada.
O que ficou disso tudo? Medo, medo de
altura e nojo de macarrão branco, além de uma baita anemia.
Bem! O tormento mudara, mas não acabara.
Pois, passamos frequentar a creche. Era fila para tudo: ir ao banheiro; o
horário do banho começava às 16 horas, numa fila interminável, quando
finalmente chegava a minha vez, naquela banheira gigante com três meninas, numa
água fria e suja (confesso que muitas vezes fiz xixi), não por vontade, mas por
falta de controle daquela situação insana.
Quanto à comida. Adivinha? Macarrão!
Mas era variado, um dia com abobrinha, outro chuchu. Para beber: Q-Suco, mas
não era tão doce.