21 agosto, 2012

Esquecendo


Esquecendo

 

O dia triste em que percebi sua ausência, não a ausência física, mas ausência do seu eu.

 

Fiz-me de observador crítico demais e imaginei estar imaginando coisas. Afinal você só tem sessenta e cinco anos, de muita saúde anatômica. Mero engano, mero desespero para quem sempre lhe teve o mais alto grau de admiração pela integridade e pela inteligência. Seu diagnóstico foi rápido, certeiro: Alzheimer.

Passamos a lhe cuidar como se cuida de uma criança pequena, tirando os perigos visíveis e esquecemo-nos dos invisíveis. Daqueles que uma alma não sabe o próprio nome, idade, cidade... E o deixamos ir, não porque queríamos essa partida, mas pela falta de como lhe trazer de volta para casa e para as coisas básicas.

O seu básico passou a ser: olhar vazio; tarefas feitas pela metade, como passar manteiga na maçã, abrir e não fechar a torneira, vestir casaco de lã em pleno verão, garfo para tomar sopa, livro de ponta cabeça e tantas outras coisas que não faria sentindo pra quem te viu pleno, ativo, vivo.

Passei a pesquisar, a querer entender e me deparei com o nada, não há o que fazer para lhe trazer para a realidade, para a verdade. E, de verdade, não sei o que é verdade, onde tudo parece ser uma mentira muito bem contada que você não mais me vê, não mais me entende. Eu queria me forçar a acreditar que era apenas uma fase ou um pesadelo longo e a lonjura se prolongou na mais simples ocupação dos dias.

De repente uma explosão de histórias contadas por ti, como se fosse acontecida a pouco e, no entanto, eu nem era nascido, parece que sua vida do passado se passava na TV de tão clara, no entanto, o agora é breu, neutro. E vejo que a lógica não escolhe o tempo certo, apenas se passa como se escondesse de alguma coisa, talvez seja como esquecer que a morte existe, talvez seja como querer voar e não ter asas, talvez seja não sentir ou sentir e não saber descrever. Talvez seja recomeçar de onde se foi realmente feliz. 

Vai entender o que essa perda de neurônios.

Se pelos menos eu pudesse ter percebido antes a forma insidiosa, em que você não se lembrava das chaves da porta, da hora do futebol, do dia do meu aniversário... Se eu tivesse prestado mais atenção nesses pequenos detalhes!

Tão triste como não perceber é saber que de nada adiantaria, pois o doutor me explicou que os emaranhados neurofibrilares aumentam como nuvens e nada podemos fazer.

Passei a usar emaranhados em quase tudo do meu dia a dia; emaranhados de trabalho, de contas, de medo, de impotência.

 Deu-me um click, já pensou se a causa desse mal é isso: um emaranhado de coisas não resolvidas e o resultado final são a perda de neurônios, perda de sentidos. Tá! Vaguei, viajei, mas o que pensar?! Se para ele passei a ser o jardineiro. Passei ser o capitão de um barco à deriva, onde os marujos pulam no mar com medo da tempestade. Passei ser estrangeiro no seu/meu país. Passei ser o pai do meu pai.

Um dia após o outro e nem mais o passado ele vê, agora inerte, mais isolado, mais longe. Não sei o que pensa, se é que pensa; não sei o que sente, se é que sente. Quanto a mim, penso que morrer é isso, ir esquecendo, esquecendo até fechar os olhos de vez.  

Mas do que mesmo estamos falando?




Um comentário:

  1. Por motivos pessoais terminei o texto bem emocionada... Penso que quem esquece, nem que seja em um lampejo de lucidez pensa que os outros e as outras coisas é que estõa morrendo (afinal, mesmo sem a cabeça boa, ñ esquecemos de culpar o outro), porque os pequenos hábitos desaparecem, os gestos simples são esquecidos e os rostos, de quem?

    Agora fiquei pensando... eu não confio na memória.

    Beijos,
    estava com saudade!

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