Participação Concurso Literários: Contos da quarentena - Editora Lello - Portugal. Maio de 2020.
Máscaras
Lá
fora o vento varria as ruas, em um dia atípico, já que em dias ditos normais, estariam
atulhadas de pessoas apressadas. Dentro da sala iluminada da grande empresa de materiais básicos e equipamentos para hospitais, a Santos S.A.,
Glória observava os colegas de trabalho com uma distância de dois metros uns
dos outros. Todos estavam tais como ela, “mascarados”, porém, a respiração ofegante
demonstrava certa claustrofobia da parte deles. No entanto, para Glória a sensação
de bem-estar e proteção era uma antiga conhecida. Em seu peito, contudo, a
falta de seu pai latejava em dores agudas.
Pela
primeira vez sentia-se parte daquele ambiente, bem como da sociedade. Ela, que
era a primeira a chegar ao trabalho e a última a sair; com sua fala
monossilábica, direta e um tanto ríspida, não demonstrava empatia por quem quer
que seja. Seu cargo de administradora permitia-lhe ser distante, ainda que esse
cargo exigisse a função de organizar, gerenciar,
coordenar e orientar recursos financeiros, físicos, tecnológicos e humanos, mas
tudo isso sem nenhum vínculo afetivo: apenas ordenava, sem dar chance de
argumentação ou questionamento.
O
dono da empresa lhe dera o cargo não porque era amigo de seu pai, mas, sim,
porque fora muito bem no teste. Ela se sentia “segura”, pois Santos sabia o
porquê do uso da máscara no trabalho e, em nenhum momento, a questionava. Já as
outras pessoas, a princípio, imaginavam que ela tivesse uma doença, ou talvez
fosse hipocondríaca, ou coisa do gênero.
Pela primeira vez, Glória se sentia
bem no meio daqueles que a hostilizavam pela máscara usada em seu dia a dia. Trabalhava
ali já havia três anos e, ainda, assim ouvia motejos:
–
A mascarada; A fantasiada; A monstra; A misteriosa...
Seu trabalho ficava apenas a um
quilômetro de casa. Isso lhe permitia ir almoçar com pai todos os dias.
Permitia, mas não mais.
No
bairro, os comerciantes já haviam se acostumado com sua rápida aparição. Às
vezes, entrava no mesmo bistrô e pedia um prato para viagem. Isso, quando
perdia para o pai alguma aposta, quase sempre sobre um jogo literário.
Para
evitar os olhares curiosos comprava roupas, remédios, itens de higiene pessoal
por aplicativo. É bem verdade que muitas das roupas não davam muito certo, mas
tinha muito bom gosto.
O
único lugar em que entrava e ficava horas a fio era a livraria da esquina de
sua casa, lugar “sagrado”, não somente pelos afrescos
do teto, que dá ao local um ar de céu, de paz, mas pelo canto silencioso
e quase escondido que lhe permitia observar o vaivém de pessoas. Era
frequentadora tão assídua que os funcionários já nem se incomodavam mais. Ali
esquecia sua “marca”, sua tristeza, sua solidão.
Seu
pai falecera havia um mês, com apenas 66 anos de idade. Era diabético e entrou
na estatística de mortos pela Covi-19. Essa doença avassalou o mundo e, assim,
tirou dela o seu porto seguro. Tudo aconteceu tão bruscamente e nada pareceu
fazer sentido, pois a cidade de Wuhan, na China – onde a epidemia de coronavírus teve início
– ficara tão longe dali. Isso a fez
pensar: “Longe definitivamente é um lugar que não existe”.
Glória
retornava do trabalho pontualmente às 20 horas. Como sempre, não pegava o
elevador, preferia sempre ir pelas escadas – para evitar outras pessoas – com
os sapatos nas mãos. O piso gelado nos pés descalços lhe dava a sensação de
liberdade. Quando chegava próximo à porta, já sentia o aroma do jantar
preparado por ele, pelo capitão “Júlio Verne”, carinhosamente chamado por ela. Contudo,
naquela noite, nenhum cheiro e muito menos o barulho das panelas se ouvia. Entrou
rapidamente, mas o único som foi o miado de seu gato. Um miado diferente, quase
temeroso.
– Capitão Verne!
Não houve resposta. Seu coração
gelou como água álgida. Foi pé por pé ao quarto do pai, que arquejava, e sua
pele estava quente feito brasa. Glória chamou uma ambulância. Fora internado. Seus
olhos se entrelaçaram: ele queria falar, mas a falta de ar o impediu. Apenas
piscou como se ela pudesse entender o que isso significaria.
Ela
também passou por uma consulta – quase se esquecera de sua iatrofobia – sua
pressão arterial deu um alerta, era o medo que a figura médica lhe causava,
porém sem sintomas respiratórios voltou para casa. Deveria ficar em isolamento
por 14 dias. Apenas mandou uma mensagem para o patrão. Uma mensagem curta, sem maiores
explicações, apenas o básico.
Ligou
para o avô materno, Joaquim. Não revelou a gravidade, mas recomendou que ele se
cuidasse.
O
avô teve um papel importante na vida de Glória, pelo menos na infância. Com ele
tivera momentos álacres, aqueles átimos de avô e neta, que tudo pode: sobremesa
antes do jantar; dormir sem tomar banho; a mesma história contada dezenas de
vezes; subir em árvores; tomar refrigerante; correr pelo campo da bela chácara “Recanto
das Rosas”, que tinha um jardim magnífico, com flores diversas, contudo, eram
as rosas que predominavam: de todas as cores, espécies e variedades. Rosa em
homenagem à filha, mãe de Glória.
Depois
de falar com o avô ficou absorta na noite mais escura de sua vida. O mutismo
das paredes brancas lhe fazia companhia, mas em nada lhe trazia paz. Sentada no
sofá azul, o mesmo que ela se referia como o “mar” do capitão, que “mergulhava”
em horas de leitura, absorto por um romance policial ou ficção.
Somente
no dia seguinte, no final da tarde, teve coragem de entrar no quarto do pai e,
toda equipada com luvas e avental, limpou-o, colocando todas as roupas na
máquina – que produzia um barulho que até então não percebera que fazia. Mesmo
porque, era o pai o “lavador” oficial. Maníaco por limpeza, não dormia em cama
suja. Para ele, o lençol com mais de três dias de uso estaria tramposo. Exagero era um de seus defeitos. No
entanto, para a filha, ele era a perfeição em pessoa.
Dia
e noite, a mesma sensação de apreensão e insulamento. Todas as manhãs, às 10
horas, o telefone tocava, e seu coração ascendia uma esperança que aos poucos
se tornava vã, pois uma enfermeira lhe passava o boletim-médico nada animador.
Cinco
dias se passaram.
Depois
de um banho e um comprimido para dormir, novamente no sofá azul, perdeu-se no
cansaço da noite quente. Sonhou com um corvo que voava ao redor da Terra. E, ao mesmo tempo, o
corvo a carregava num voo. Do alto, ela via a morte largada em todos os cantos
do planeta. Tentava acordar, pois sabia que era um pesadelo, mas os olhos e a
mente reviviam a cena horrenda. Quando, finalmente, uma pomba lhe puxou para si
e mostrou a água lavando o mundo, tirando o mau cheiro e a dor física dos
poucos sobreviventes que restavam.
Acordou
às três e quinze da madrugada, depois de muito esforço, com um som longe, mas
insistente. Seu celular com uma luz brilhante lhe deu o norte da chamada.
–
Alô!
–
Sinto muito...
Nenhuma
lágrima, nenhuma palavra proferiu. Engrelou-se no velho roupão do capitão e, de
olhar fixo no vazio, permaneceu até o sol, nada incomodado, clarear o dia
insólito.
Nada
segura o tempo, as horas vêm e assumimos o agendado ou o provável. Há certas
coisas inadiáveis, como o nascer e o morrer.
Às
11 horas, sem ninguém, sem os amigos, sem flores, sem choro, sem despedidas, o
Capitão Verne fora sepultado.
De
volta ao seu lar desabitado.
Seus
colegas-funcionários lhe mandaram flores com um cartão de pêsames. Mago, o seu
gato, veio aninhar-se ao seu colo, ronronando carinhosamente.
De
repente, o seu mundo ficou mais desvalido.
As lembranças viam sem pedir licença a
levava ao passado e ao presente. Divagava:
– O presente tem esse nome por ser um
presente? Presente mesmo, aquilo que recebemos de alguém? Não! Esse presente é
o intervalo de tempo localizado entre o passado e o futuro; o
momento atual. Esse momento doído e doido. O agora, vazio, repleto de nãos, de
mortes, de tristezas.
Uma única certeza tinha: não teria e nem
precisaria dar maiores informações e muito menos satisfação a quem quer que
fosse.
Os amigos do pai ligaram aos montes para
saber como ela estava. Entre eles, o senhor Santos:
– Se precisar de alguma coisa! Este fora um
grande amigo de seu pai, principalmente quando Rosa partiu. Tudo o que ela
carecia já não mais teria. O passado acabou, o hoje pesa, dói e o futuro... Que
futuro? Com quem poderia ser ela mesma?
Seu
apartamento ficava no quinto andar de uma rua arborizada. A Rua da Praça dos
Ipês. Ali, em seu reduto destituído de gente, mas muito bem decorado, e com o
seu fiel companheiro que não é um cão, mas um gato.
O
seu pai compara esse imóvel para que ela ficasse mais perto do trabalho e, principalmente,
pela livraria da esquina.
O capitão
a fazia rir, sonhar e também fora ele que a ensinou gostar dos números e muito
mais das letras. O pai sempre lhe dizia:
–
Filha, os números para nós, significa profissão, já as letras, nossa diversão.
E de fato, era mesmo.
Em
sua adolescência, ele comprava dois livros, ambos os liam ao mesmo tempo, para
depois discutir de cabo a rabo, como Os
bichos, uma coletânea de catorze contos de
Miguel Torga. Foi assim que ela teve seu encontro com as letas e, desde
então, ler é um prazer e uma fuga da realidade, às vezes cruel.
Quanto
ao seu nome, Glória, ele disse recentemente que é uma referência ao filme Dor e glória, de Pedro Almodóvar.
– Mas como? – perguntou ela – Se o filme foi lançado em 2019
e estamos em 2020? Isso a fez rir muito. O seu pai saía com cada uma, inventava
histórias, personagens.
Para Glória, o pai, na verdade, poderia lhe ter dado o nome
de Dor, se o filme tivesse sido lançado antes do seu nascimento, embora este nada
tenha de sofrimento. Pelo contrário, é
alegre e comovente. Assim, Dor ou Glória daria no mesmo.
Fazendo uma retrospectiva de sua vida, chegara à conclusão de
que tivera mais dor do que magnificência, mesmo com o nome de Glória.
Sua mãe Rosa, estudante de música, mais precisamente de
violino, a mais bela flor, como dizia seu pai, morreu aos trinta e três anos,
quando Glória tinha apenas quatro anos.
Os seus pais se conheceram por acaso: se esbarram na Rua das
Flores e, segundo ele, foi amor à primeira vista. Logo depois se casaram, pois
ela sonhava em ter muitos filhos, porém demorou muito para engravidar. Enquanto
isso, o pai trabalhava dia e noite para ter estabilidade financeira.
Quando finalmente Glória nasceu, foi realmente a “glória”
para a mãe.
Três anos depois, mais uma alegria. A mãe novamente grávida,
feliz. Mas, no sexto mês o pequeno nasceu e três dias depois morreu. A pobre mulher
entrou em uma tristeza permanente, nem mesmo Glória e o violino foram capazes
de tirá-la do adro a que ela entrou.
Numa manhã gelada, a mãe acordou com um beijo do marido que
estava saindo para o trabalho. Ele, normalmente, preparava o café da manhã para
elas, mãe e filha, porém, perdera a hora. Saiu apressado depois de ver que a
pequena ainda dormia.
Quando Glória despertou, chamou pela mãe, que se arrastando
da cama quente foi até a cozinha e colocara uma chaleira de água para ferver. Viu
que a filha estava brincando no tapete da sala. Caminhou até o banheiro. O
espelho mostrava uma pessoa apática e sonolenta. Entrou no chuveiro a fim de minimizar a
madorra. Na verdade, este era o seu estado nos últimos meses. O sono lhe trazia
esquecimento.
De repente, ouviu-se um grito de imensa dor. Por um segundo,
despertou-se de seu estado imoto. Glória, a água...
Ver a filha com o lado esquerdo do rosto desfigurado foi o
cimo, o fim.
Sono, descanso.
Desde então, o pai foi sua referência. Da mãe, tinha como
lembrança o doce som do violino, apenas.
Eurico, com a morte da esposa passou a ser metódico, isso
para não dizer maníaco por limpeza, cuidava da alimentação, fazia atividade
física, tomava os remédios certinhos, vitaminas A, D... Era de uma organização
doentia, sabia onde estava qualquer objeto, documento.
Ele pensou que enlouqueceria com a morte de Rosa, mas a filha
precisava de cuidados, apoio. Na verdade, ele não tivera tempo para viver a
perda de seu grande amor. E com o passar do tempo foi se acostumando a ser pai
e filha, somente.
Depois de se aposentar, fazia tudo em ordem cronológica:
acordava às 6 horas; tomava banho; prepara o desjejum; lia o jornal; saía para
correr, na volta mais uma chuveirada; limpava a casa, todo santo dia; fazia o
almoço, pois Glória ia almoçar em casa; limpava a cozinha; tirava um cochilo de
trinta minutos; comia uma fruta; lia pelo menos um capítulo do livro da vez;
saía dar uma volta e falavam com uns e outros. E, às 19 horas, começava a
preparar o jantar, esperando pela filha com a mesa posta e flores a enfeitar a
mesa, normalmente, rosas.
Glória desde os seis anos de idade, começou a usar máscara,
pois a queimadura de terceiro grau marcou sua face. O bom é que ela não se
lembra de nada, mas conforme crescia não entendia porque era diferente das
demais crianças.
Em certo dia na escola, alguns coleguinhas riram muito quando
ela tirou a máscara para lanchar. E foi assim que começou o seu tormento.
Passou ser uma criança solitária; não comia em público; evitava convites para
festinhas; não falava com conhecidos e muito menos com estranhos. É bem
verdade, que queria ser “normal”, bela admirada, ou apenas aceita, mas as
circunstâncias colocara uma barreira invisível, porém cruel, na cabecinha de
uma criança que expandiu seu estigma: Assim
crescera sem amigos. Já em casa, era cercada de amor, de afeto, tanto pelo pai
como pelo avô materno, que os visitava ou quando ela passava alguns dias na chácara.
O avô sempre tentava tirar de Glória o uso da máscara,
dizendo-lhe que aquela marca em nada lhe tirava a beleza; que ela podia fazer
terapia, buscar ajuda de um profissional, mas o pai não concordava com isso, e
assim incentiva a filha a esconder a cicatriz que marcava a face esquerda e
descia um pouco abaixo do queixo. Ela, além da máscara, escondia os vestígios
da queimadura com os cabelos longos.
Para Eurico, era uma forma de proteger a filha. Para ele, a
máscara era uma proteção da maldade alheia. Já para o avô, era uma fuga da
realidade. Nada era mais difícil que a perda de sua filha e a neta crescer sem
a mãe.
Joaquim, no seu íntimo, culpava Eurico pela morte de sua
única filha. Se ele tivesse sido mais atencioso, companheiro... Talvez a filha pudesse
ter superado a depressão. Mais isso é algo que não saberemos jamais.
É claro que Glória passou por uma cirurgia plástica, mas,
infelizmente, teve infecção bacteriana que, obviamente foi curada, mas a cicatriz
ficou mais acentuada. Além disso, depois de tanto sofrimento físico para se recuperar
da queimadura e da infecção, passou a ter pânico de médico, o jaleco branco lhe
remetia a dores vivas. Foi por isso que o pai optou por não mais tentar.
A menina estudava muito e sempre passava com louvor em todas
as matérias.
Quando, aos seus quinze anos, o pai lhe deu um anel solitário,
ela pensou que o presente era uma cópia fiel de sua vida: solidão.
Nunca teve interesse nos meninos, ou nunca se deixara
despertar para um romance. Não se imaginava com ninguém. Sua vida se resumia em
estudar e estar na companhia do pai.
Eurico levava Glória para visitar os avós com frequência quando
criança, depois, na adolescência, uma vez por mês; uma vez por ano,
normalmente, no aniversário ou no Natal. Enfim, como tudo nesta vida, as prioridades
mudam.
Glória se formou em Administração e Ciências Contábeis, já
que a instituição de ensino lhe dava essa segunda diplomação. O seu pai sentia
muito orgulho, pois, de certa forma, ela seguia a mesma profissão dele,
contador, que trabalhou quarenta e cinco anos na mesma empresa.
Antes desse emprego atual, Glória trabalhou em várias outras
empresas, mas devida a circunstâncias óbvias, não dera certo. Até que o amigo
de seu pai a convidou para um teste. É claro que as piadinhas dos colegas de
trabalho não foram diferentes das anteriores, mas, ela, em momento algum se
deixou ser vista de verdade. Assumiu para esse novo cargo uma postura
reservada, austera, embora o olhar fosse de uma pessoa triste, inteligente e
doce.
O que parecia a outras pessoas era que Glória era uma criatura
arrogante pelo fato de não se misturar e, também, por ser muito competente e
impositiva na profissão. Em sua admissão, o problema foi a foto para o crachá,
mas isso foi resolvido pelo senhor Santos, que permitiu que ocorresse com a
máscara – talvez tenha sido um pedido de seu pai. Aliás, a única foto de rosto,
tal como a realidade, com exceção dos documentos e bebezinha, era que o avô
tirou. Fora isso, era sempre de máscara e de perfil direito.
Na faculdade não dava a mínima para os colegas, talvez para
evitar o porquê da máscara. Não se sentia na obrigação de manter qualquer tipo
de relação. Na formatura, sem festa, foi a primeira da turma, mas, como de
costume, não participou nem da colação.
Aprendera com o pai a demonstrar altivez, pelo menos
aparentemente. Nunca demonstrava um sinal de fraqueza. Vestia-se impecavelmente
e sempre de salto alto, os cabelos castanho-claros levemente encaracolados lhe
dava um ar clássico. As máscaras sempre combinando com as roupas. Não dava chance
a ninguém de se aproximar, mesmo quando recebia um elogio.
A distância que o seu cargo lhe dava com os demais
funcionários da empresa era uma dádiva. É bem verdade que sabia das piadinhas e
das fofocas que corriam soltas. Mas, por outro lado, tinha conhecimento que
outras pessoas ali, por serem “diferentes”, tinham a mesma sentença. Afinal o
ser humano, nada perfeito, acha defeitos em qualquer um, seja por ser negro,
homossexual, gordo, baixo, magro, cristão, pobre... Ninguém escapa do rótulo da
maldade.
Décimo dia de isolamento.
Pesquisava na internet notícias sobre a pandemia: a Covi-19 já estava com
4,1 milhões de casos confirmados e 300 mil mortes. Uma dessas mortes é do
Capitão Verne. Justo ele que se cuidava tanto. Justo ele que era o seu firmamento.
O
que ela faria? Não tinha com quem contar. O que seria do trabalho? A empresa
fecharia como tantas outras? Ainda que tivesse uma reserva de dinheiro, este
não seria terno. E os outros funcionários que tinham família e que dependiam do
emprego? Como sobreviver em um mundo doente?
Preparou um café e encostada na janela entreaberta, observou
a rua deserta. As flores dos Ipês balançavam animadamente, uma e outra se
deixavam ir. Quisera ela ser uma flor, sem pensamento, sem sangue, sem sentir.
De repente, a lágrima se misturou ao café e, num gosto amargo,
desceu ao estômago vazio. Lembrou-se que não fizera uma refeição decente há
vários dias. Se o capitão estivesse ali, ela levaria uma bronca daquelas!
Preparou uma torrada com um pão velho que achara na despensa.
Mas, o que era um pão mofado, comparado a um vírus que talava o mundo.
Tudo que mais queria era dormir, como a mãe fizera. Teve essa
lembrança e, pela primeira vez, compreendeu o adeus... Pôde, finalmente,
perdoá-la pelo pecado cometido. Queria ter a mesma coragem, mas era deveras
covarde.
Décimo quarto dia de isolamento.
Acordara com uma sensação de que tudo fora um terrível
equívoco. Que o pai abriria a porta contando uma piada sem graça. Contudo, Mago
miou, lembrando-a que ele era o único ali, além dela.
Entrou no quarto do pai, abriu o armário de roupas tão bem
organizado, por cores; o papel de parede lembrava o outono, sua estação
preferida; os livros na estante em um arranjo que iria do maior para o menor, mas
ainda assim, ele sabia exatamente onde localizar cada obra, cada autor. Sentiu
uma saudade e uma força inexplicável.
Encheu a banheira e mergulhou nela como um peixe sedento. Com
o espelho embaçado não conseguia ver nitidamente a cicatriz, mas viu-se por
dentro. Ela nunca fora o monstro que muitas vezes ouvira, ela era apenas um ser
humano e seguiria, apesar de tudo. Tomara a decisão de agir diferente depois
que o mundo voltasse ao normal. Este rompante foi por alguns segundos, logo
voltara a dúvidas que lhe acompanhava desde sempre: rejeição, rótulo, desamor.
Sentiu fome. Depois de tantos dias, teve vontade de comer de
verdade. Fez um pedido no bistrô. Aproveitou para comprar por aplicativo
frutas, leite, pães, ração.
Separou a roupa que usaria no retorno ao trabalho. Adormeceu
sem nenhum pensamento.
Levantou-se uma hora antes, pois já não tinha mais o pai para
lhe preparar o café. Arrumou-se e, depois de deixar ração e água para Mago,
saiu deixando seu perfume impregnado no tapete bege da sala, pois derrubara o
vidro sem querer. Na verdade estava um pouco tensa.
Dentro do carro, percebera que havia poucas pessoas nas ruas,
mas, assim como ela, estavam usando máscaras. Isso lhe fez rir, pois todos
pareciam iguais.
Já no escritório, foi recebida por palavras de consolo e, por
incrível que pareça, sentiu-se bem-vinda. Um e outro colega não estavam, porque
estavam doentes ou por serem do grupo de risco.
Depois de tantos dias em casa, foi informada das novas
políticas da empresa: em relação à higiene e distanciamento, mas que também
teria redução de salário. O que permanecia o mesmo era o fato de estar
empregada, pois a empresa era fornecedora de insumos hospitalares.
Após de inteirada de tudo e
com muito trabalho para pôr em dia, esqueceu por algum tempo da atmosfera
sinistra que pairava no ar. Foi ao banheiro e, como estava sozinha, tirou a máscara
para lavar o rosto, quando Alicia entrou chorando. Rapidamente, Glória colocou
a máscara, não para somente esconder sua cicatriz, mas, também, para manter o
protocolo.
Alicia perdera a mãe pela Covi-19.
Glória conhecia bem essa dor, a dor da perda. Elas choraram juntas. Depois de
tanto tempo trabalhando no mesmo ambiente, esta fora a primeira vez que se
entenderam, sem ao menos dizer uma única palavra.
Os dias foram passando e mais perdas. O
escritório e a fábrica que antes tinham mais de dois mil funcionários, agora
contavam com cinquenta. Glória que trabalhava com cálculos e delegando funções,
fora também para a linha de produção.
A cidade parecia um lugar abandonado às
pressas. O lixo ganhava mais espaço em cada rua. O medo era notório em cada
olhar.
Além da doença matando em todos os continentes,
o desemprego crescia. As ruas fechadas, pessoas nas janelas espiando os carros
fúnebres e ambulâncias reluzentes e barulhentas. Em alguns lugares, viam-se corpos
esperando quem os levassem. Supermercados com prateleiras vazias; lojas
fechadas com tapumes em forma de cruz; igrejas e templos vazios; escolas
silenciosas.
A livraria, a sua livraria, talvez fosse
a única não abandonada, já que os muitos personagens, doutores, professores,
poetas estavam presentes nas obras.
Seria o fim da espécie humana? A
história parecia se repetir como a Gripe Espanhola, em 1918. A diferença é que,
em 2020, a tecnologia mostra a devastação em tempo real. Ou seja, em janeiro
de 2020, a crescente proliferação do novo coronavírus transformou-se em mais um
dos maiores desafios da humanidade, e todos tinham informações a respeito. Assim, Glória
passou compulsivamente a procurar dados, pesquisar. Queria entender:
“De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), pandemia
é um termo usado para uma determinada doença que rapidamente se espalha por
diversas regiões, continental ou mundial, por meio de uma contaminação
sustentada. Assim, a gravidade da doença não é determinante, mas, sim, o seu poder de
contágio e sua proliferação geográfica”.
“O isolamento social tornou-se a
primeira recomendação, bem como cuidados com a higiene contra a doença”.
“O impacto da pandemia de coronavírus no
comércio mundial”.
“Em meio à pandemia, economia mundial deve recuar 3,2%
em 2020”.
“Trezentas mil mortes do mundo.”
Incontáveis informações escusas de que muitos
foram contaminados e, pior, ceifados. A situação de óbitos entrava na
estatística, não pelos nomes, mas pelos números. E, assim, os mortos foram
perdendo seus prenomes.
Já não havia mais um José que perdera a
vida pelo vírus. O axioma mostravam Josés, Joãos, Marias, Marcos, Renatos,
Antônios, Luzias, Fernandas, Santos, Joaquins...
Avô e o patrão faleceram no mesmo dia.
As horas e os dias já não a distinguiam
do fazer, comer. Tanto faz! O cansaço físico e mental era observado em sua face
pálida.
Tudo era feito no automático: Levantar,
dirigir, trabalhar, comer, não falar, continuar, viver. Viver?
Depois de mais um dia sem limpidez,
Glória chega do trabalho em estado de pura delusão. Mago quando a vê, solta um miado agudo, e, arrepiando
os pelos, sai em disparada.
Deita-se no sofá azul revivendo cada
acontecimento cruciante. Talvez o calor tenha agravado ainda mais sua palidez.
Entre um delírio e outro, cita a frase
preferida do jogo literário que brincava com o pai: A gente entende pouco do semelhante. Cada um de
nós é um enigma, que na maior parte das vezes fica por decifrar.
Lágrimas escorrem pela face disforme,
sem fantasia.
Corre o olhar em cada detalhe da grande
sala. A desordem demonstra a falta daquele que zelava pelos detalhes e limpeza.
O livro Até o fim do mundo, mera
coincidência, largado na mesinha
lateral, traz lembranças do capitão.
As cortinas nutavam devagar, mostrando
as flores secas na sacada. Por um instante pensa no avô, no seu maravilhoso
jardim, no cheiro das rosas. Rosa-flor, Rosa-mãe.
Engasga-se com o salgado pranto. Tosse. Procura
o ar numa ânsia profunda.
Nada fazia sentido, a não ser o som de
um violino que entrava pela nesga janela.
A máscara esconde uma face, mas não uma
vida.
Num lugar que já fora jardim,
Cresce um silvado pálido.
Não há distinção...
Sono, descanso.
Vc retratou a impotência, a confusão, a solidão, o desespero que a pandemia nos causa. Triste e lindo, como deveria ser! Parabéns!
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